Zee Zee estreia-se em Portugal com uma viagem centrada na obra de Franz Liszt e no impacto que teve noutros compositores. Considerada uma das melhores da sua geração, a pianista vem ao Porto contar uma história, porque só assim um recital faz sentido.
Liszt influenciou Wagner que, por sua vez, teve impacto no modo como Schoenberg abordou a composição. Também Ravel se inspirou em Liszt, considerado não só como um grande compositor, mas também um dos melhores pianistas de sempre. São estas as ligações que Zee Zee apresenta na Casa da Música, num recital em torno do seu trabalho mais recente, Journey.
A viagem faz-se com Franz Liszt enquanto “personagem principal”. “Viajar foi sempre o núcleo central da vida de um músico”, nota a pianista. Années de pèlerinage, uma das obras essenciais do compositor húngaro, refl ecte a ideia central da proposta de Zee Zee, que gravou o disco durante a pandemia, numa fase em que as viagens físicas foram uma impossibilidade. “Sendo músicos, viajamos espiritualmente”, contrapõe. Natural de Shenzhen, na China, Zee Zee encontrava-se na sua cidade natal quando o mundo se fechou. Journey é ainda o resultado de uma forma de elaboração de programas que tem em vista a construção de uma narrativa. Quando desenha um recital, a pianista sente a necessidade de contar uma história. “As obras não podem ser colocadas juntas de forma aleatória – tem de haver uma ligação entre elas para poder apresentar uma história ao público”, vinca a pianista, conhecida pela sua forma expressiva de abordar o piano. “Para mim, tocar não tem a ver com técnica. É sempre a expressão de algo: tanto para descrever uma imagem ou para contar uma história, como para partilhar, enquanto intérprete, a compreensão de uma obra e o que sinto em relação a ela.”
Zee Zee começou a tocar com apenas cinco anos, em Berlim, onde viveu um período da infância. De regresso à China, continuou a ter aulas de piano, tendo estudado mais tarde na Eastman School of Music e na Juilliard School. Com vários prémios e distinções no currículo, está entre os pianistas mais requisitados da geração a que pertence. Resume a importância da música ao essencial: “A música é vida e está em toda a parte. Não é algo assim tão profundo, tão sério ou difícil de perceber”.
A estreia de Zee Zee em Portugal acontece na Casa da Música. A viagem está marcada para 21 de Maio. “Para mim, tocar não tem a ver com técnica. É sempre a expressão de algo…”
Texto: Isabel Correia de Castro
Entrevista completa
Isabel Correia de Castro – É um repertório bastante abrangente aquele que apresenta na Casa da Música: de Wagner a Schoenberg, passando por Ravel e Liszt, com o qual tem uma relação especial. O que significam estes compositores? São obras que juntou no seu último disco, Journey.
Zee Zee – Sim. De facto, a personagem principal é Liszt. Durante os últimos três anos, a Covid afectou o mundo e especialmente a China. Como músicos, viajamos a vida toda. Há duzentos anos, de Chopin a Liszt – e até mesmo músicos que viveram antes –, viajar era o núcleo central da vida de um músico. Tenho viajado durante a minha vida quase toda: para tocar, para estudar. Por causa da pandemia, as viagens pararam. Mas, sendo músicos, viajamos espiritualmente. Em 2021, comemorou-se o [210.o] aniversário de Liszt e quis fazer um disco. Liszt foi também dos maiores pianistas da história da música. Uma das suas obras essenciais é Années de pèlerinage – são composições sobre a época em que viajou para a Suíça, para Itália, numa idade já mais avançada. Estas obras reflectem a sua vida toda: desde que era jovem até muito tarde. Comecei então por Liszt, que exerceu grande influência em gerações mais novas, como é o caso de Wagner. Wagner, por seu turno, influenciou Schoenberg. Quis criar algo sobre Liszt e a influência que teve no seu tempo. Années de pèlerinage teve impacto em Ravel. Wagner admirava imenso Liszt. Estudou com Liszt e casou com uma das filhas dele. Existia uma grande ligação entre eles. Schoenberg também compôs inspirado no prelúdio de Tristão e Isolda de Wagner. Por isso é que coloco Wagner e Schoenberg juntos, porque foi a inspiração de Schoenberg para compor o seu Opus 11.
I.C.C. – Quão difícil é definir um programa?
Z.Z. – É sempre complicado, todos os anos, quando tenho de pensar no que quero fazer a seguir, no que quero dizer e expressar, em porque é que as pessoas me querem ouvir tocar outro programa. Em primeiro lugar, tenho de ter muito interesse nas obras, querer mesmo tocá-las. Depois, há que pensar se posso tocá-las bem e se posso efectivamente expressar porque é que quero tocar estas obras para o público. Tenho de criar uma história. Estas composições não podem ser colocadas juntas de forma aleatória – tem de haver uma ligação entre elas para poder apresentar uma história ao público. Ao mesmo tempo, não podem ser aborrecidas e não podem ser todas fortes e luminosas: tem de haver um equilíbrio, especialmente em recitais. O programa tem de ser uma novidade, ser interessante, bem tocado, e tenho de compreender bem as obras. É sempre uma grande questão.
I.C.C. – Considera que “viajar é uma parte inevitável da vida de todos os músicos”. A sua relação com o piano começa com uma viagem: foi com os seus pais para a Alemanha, muito nova, e foi em Berlim que teve as primeiras aulas de piano.
Z.Z. – Na altura, quase não existia música clássica na China, mas o meu pai sempre gostou de música clássica, ouvia sinfonias. Quando fui para a Alemanha, na década de 1990, não era tão comum ver asiáticos. Eu não falava a língua e não tinha amigos. Numa cidade como Berlim, a música clássica está no ar. Ia a um café com a minha mãe para comprar pão e ouvia-se como música de fundo uma sinfonia de Beethoven. Foi assim que comecei: toda a gente tocava e, de algum modo, isso ficava-me no ouvido. A minha mãe comprou-me um piano para eu me entreter. Foi assim que comecei.
I.C.C. – Depois regressou à China, a Shenzhen, e continuou a estudar piano. Foi uma decisão consciente? O piano fez sempre parte da sua vida.
Z.Z. – Os meus pais quiseram regressar à China e, nessa altura, em 1995, já tocava piano há dois anos. Perguntaram onde é que eu poderia continuar a estudar piano – achavam que eu tinha algum talento, tinha ganho um prémio. Não foi uma opção minha, continuei alegremente, e entrei por engano numa escola de artes (risos). Comecei a ter uma formação muito profissional em piano sem sequer me aperceber.
I.C.C. – Mas não se imaginava sem o piano.
Z.Z. – Até muito mais tarde – 14, 15, 16 anos. Um dia, o meu pai veio ter comigo e falámos sobre o que eu iria estudar no ensino secundário, quais os planos para a universidade. Perguntou-me se queria estudar piano. E eu respondi-lhe: ‘a sério, agora é que me pergunta?’. Mas sim, a resposta foi um ‘claro que sim’. Quanto mais tocava, mais gostava de tocar. Quanto mais toco, mais gosto de música.
I.C.C. – É conhecida por ter uma abordagem ao piano muito emotiva. Sorri, ri, sofre…
Z.Z. – Tento controlar, mas não consigo (risos)!
I.C.C. – E como é este processo de combinação entre um nível tão elevado de técnica e as emoções que a música lhe desperta?
Z.Z. – Nunca é técnica. Para mim, tocar piano não tem que ver com técnica. É sempre a expressão de algo: tanto para descrever uma imagem, para contar uma história, como para partilhar, enquanto músico, a compreensão de uma obra e o que sinto em relação a ela. Nunca é técnica.
I.C.C. – Estava na China quando a pandemia começou e, de repente, teve de mudar de planos. Como é que foi voltar a casa, com as fronteiras fechadas, impossibilitada de continuar a sua viagem?
Z.Z. – Tive sorte porque estava grávida. Tinha planeado uma licença de maternidade de quatro meses. Uma semana depois de ter dado à luz, começou a pandemia. Tive sorte porque acabei por poder passar muito tempo com a minha filha e com a minha família. Mas, depois, comecei a tocar muito na China. Desde os tempos da faculdade que não passava um período tão grande em Shenzhen. Foi a primeira vez que fiz tantos concertos na China e foi muito bom ver como o público aumentou. Todas as cidades têm um novo auditório, um Steinway lindo, bastidores fantásticos, todos os equipamentos necessários e pessoas muito profissionais a trabalhar. O público sabe o que vai ouvir. Alguns fãs vieram ter comigo com perguntas sobre música extremamente profissionais. Fiquei admirada com a forma como o contexto da música clássica se desenvolveu durante estes anos. Portanto, tive a possibilidade de explorar o meu país, o que foi muito emocionante.
I.C.C. – Desenvolveu um projecto sobre música para crianças enquanto esteve em Shenzhen.
Z.Z. – Continuo a desenvolvê-lo. Muitos pais vieram ter comigo e disseram-me que os filhos não gostavam de estudar piano ou detestavam os instrumentos que tocavam. Só queriam ouvir k-pop. E perguntaram-me o que podiam fazer para que os filhos gostassem de música. É uma pergunta que é colocada muitas vezes. Então pensei que lhes poderia mostrar porque é que a música é tão fantástica. Não temos de nos obrigar a gostar – só temos de gostar. Foi assim que comecei a fazer algumas apresentações e palestras para crianças, mostrando-lhes os instrumentos e estabelecendo ligações. Lembro-me tão bem do Tom & Jerry e da música de Liszt, a Rapsódia Húngara. A música que o gato tocava ao piano era essa! É assim que música deve ser: está viva e em toda a parte. A música é vida – não é algo assim tão profundo, tão sério ou difícil de perceber.
I.C.C. – O concerto na Casa da Música é a sua estreia em Portugal. Que expectativas tem?
Z.Z. – Estou muito entusiasmada. Estive em Lisboa com a minha família e gostei muito de Portugal, da comida, das pessoas, lembro-me que toda a gente falava inglês. Estou muito ansiosa por ir e poder partilhar a minha música.