A Elektra de Richard Strauss (1864-1949) foi composta há já mais de um século, em 1908, e estreada um ano depois, mas dificilmente alguém que a conheça hoje poderá esquecer a experiência. Aliando uma excentricidade musical desarmante a um drama gráfico e violento centrado na vingativa Electra da mitologia grega, tem sido apontada como um dos pontos culminantes do modernismo na ópera, marcando a imaginação do público não só nas apresentações em palco, mas também em formato de concerto (como a Casa da Música agora apresenta) ou ainda em versão cinematográfica (como no filme de Götz Friedrich de 1981).
Para constatar desde logo o escopo emocional e musical sem precedentes que caracteriza a Elektra bastaria ouvir, por exemplo, dois minutos de música desde o momento em que Electra reconhece o irmão após anos de separação. “Orestes!” – o choque avassalador que dela se apodera é correspondido por um acorde violentíssimo em que as dissonâncias se amontoam numa aparência de caos musical, antes de dar lugar a um breve e terno apaziguamento, feito com sonoridades bem menos desafiantes. Strauss, formado nos princípios basilares da escola de Wagner (entre os quais o uso do leitmotif e a saturação da harmonia com cromatismos), leva a tensão da linguagem musical a um ponto incomparável, esticando as possibilidades tonais até ao limite e sem quaisquer pruridos (em especial nos momentos mais emotivos e na música destinada a Clitemnestra, vilã nesta história). Por toda a partitura a sonoridade é densa, orquestralmente virtuosística, detalhadamente sugestiva e fiel a um substrato emocional e psicológico. O desconcerto que a música tão moderna de Strauss provocou inicialmente foi de tal ordem que motivou desenhos satíricos em que Strauss aparece a dirigir uma orquestra de animais.
Elektra não foi, contudo, um primeiro caso. Diga-se que as páginas mais audazes dos seus poemas sinfónicos, deixavam já perceber um apetite pela expansão da linguagem. Mas foi com a ópera Salomé, baseada no texto homónimo de Oscar Wilde e estreada perante um público escandalizado em 1905, que se deu a grande pedrada no charco, com música tão chocante como o enredo, carregado de luxúria, incesto e depravação inimagináveis num palco da época (a famosa Dança dos Sete Véus, altamente sexualizada, ou a cena final em que Salomé, refém de desejo não consumado, pede a cabeça de João Baptista numa bandeja e a beija extasiada, não deixaram ninguém indiferente). Elektra foi um natural passo seguinte, mais uma vez com uma história tão fascinante quanto repulsiva e música ainda mais extremada.
O libreto de Hugo von Hoffmansthal (1874-1929) toma como base o mito que conhecemos das tragédias gregas. Electra, filha de Agamémnon e de Clitemnestra, é irmã de Crisótemis e de Orestes, que no início da narrativa está exilado. Vive obcecada com a morte do pai, assassinado por Clitemnestra com a ajuda do amante Egisto, e anseia pelo retorno de Orestes para poderem juntos vingar o crime. O irmão chega incógnito, mas Electra acaba por o reconhecer e planeia com ele a vingança. Por fim, é ele que mata a mãe enquanto Electra assiste, em êxtase. Hoffmansthal realça na sua adaptação o lado mais complexo e obscuro das personagens, com as suas obsessões, impulsos e desejos recônditos, incluindo mesmo detalhes novos, como um momento de insinuação lésbica entre Electra e a irmã. O tom da narrativa denuncia a época em que foi escrita: uma época em que se falava de “histeria feminina” e em que Freud consolidava a psicanálise; em que Carl Jung adicionava ao léxico a ideia de um “complexo de Electra”, convertido em senso comum; um tempo em que a subversão de papéis e a aclamação de poder feminino signficavam perigo e neurose.
Nesse ano em que Strauss assinava o culminar do seu modernismo, Mahler escrevia a 9ª Sinfonia; seguir-se-iam os esboços da 10ª, cujo Adagio contém um grito orquestral de expressão semelhante ao da exclamação de Electra perante Orestes. Schoenberg seguiu enfim a partir de onde Strauss tinha ficado, inaugurando no mesmo ano da Electra a escrita atonal, da qual surgiriam obras como o monodrama Erwartung – em torno de uma mulher que, ansiosa e assustada, procura o seu amado na noite escura da floresta e se depara com o seu cadáver. Só em 1925, já depois da Grande Guerra, é que surgiria o ex-libris da ópera atonal – o Wozzeck de Berg. Quanto a Strauss e Hoffmansthal, continuaram a trabalhar juntos, mas O Cavaleiro da Rosa e as óperas seguintes já nada têm que ver com o mundo imprevisível e irrepetível da Elektra.
Tudo começa com um gesto impetuoso da orquestra. “Onde está Electra?”, pergunta uma criada. “Está na hora dela”, responde a outra. Não tarda, estará mesmo. Ouçamo-la!
– Pedro Almeida