fbpx Skip to main content

 

Peter Rundel é o maestro titular do Remix Ensemble desde 2005. Esteve à conversa com o Artista em Residência na Casa da Música 2023, o alemão Enno Poppe, a propósito do primeiro concerto com a música do compositor, a 22 de Janeiro com o Remix Ensemble.  Além da obra que vai ser estreada pelo Remix Ensemble, Speicher, a conversa abordou também processos composicionais, a relação de instrumentista/compositor ou as influências da música não-europeia.

 

Peter Rundel: Enno, estou muito feliz por te ver aqui no Porto como compositor em residência. Este vai ser o teu primeiro concerto desta temporada, com o Remix Ensemble. Julgo, se não estiver enganado, que regressas ao Remix Ensemble uma segunda vez e vais trabalhar também com a Orquestra. Nesta primeira vez em que apresentas uma obra, uma grande obra, com o Remix, gostaria de falar acerca dessa obra, que se chama SpeicherSpeicher é, como todos os títulos das tuas obras, uma palavra muito característica, mas bastante difícil de traduzir para inglês porque tem muitos significados.  Estive a procurar, todas as referências inglesas são éticas, a memória, como traduzes?

Enno Poppe: Um armazém.  A memória, como no computador, a memória do computador, Speicher.  É o sítio onde se colocam coisas, como num armazém.  Esta peça é talvez sobre ordenar. Na memória do computador, pode haver desordem absoluta, mas a relação entre ordem e desordem é interessante.

 

PR: Em geral ou especificamente sobre esta peça?

EP: Sobre esta peça. Escrevi três peças: SpeicherKoffer e SchrankKoffer é mala e Schrank é armário, Speicher é um armazém de memórias.  São três formas diferentes de…

 

PR: Preservar as coisas. É interessante.

EP: Claro que o título não significa tanto, porque é uma obra massiva, uma obra de 75 minutos, não é possível pôr a peça numa palavra. É apenas sobre muitas ideias na peça, tive centenas e milhares de ideias e atirei-as todas para o mesmo sítio, que é esta grande peça. Claro que se existem tantas ideias no processo de composição tem de se estar sempre a pensar na ordem. E tem de se pensar em colocar as coisas juntas ou separadas. E é interessante no processo de composição. Tanto quanto me lembro, este ciclo de peças começou com uma peça.

 

PR: Não foi concebida do início como uma peça cíclica.

EP: Absolutamente. É totalmente certo. Escrevi Speicher I, que se chamava Speicher na altura, em 2010. Foi muito fácil de escrever. Demorei seis semanas a escrever a primeira peça e pensei: “foi muito fácil, preciso de ir mais longe.” Peguei nas mesmas ideias, peguei no processo desta peça, continuei e multipliquei-a. Esta primeira peça contém seis partes, cada uma delas contém seis pequenas partes, e multipliquei toda a peça. Tenho as seis partes da primeira peça como estrutura de toda a obra. Uma peça com 16 minutos tornou-se nesta peça de 75 minutos apenas pela multiplicação. O que não é bem assim, porque claro que no processo de composição os planos alteram-se, não sigo o meu plano, não são palavras-cruzadas. Sou completamente livre quando componho. Mas a ideia foi começar com a peça que já existia e expandi-la, abri-la e fechá-la.

 

PR: O que significa que não vais continuá-la ainda mais.

EP: Não, acho que está concluída. As seis partes de Speicher podem ser tocadas de forma separada, mas algumas fazem mais sentido do que outras. Mas é possível. Tinha isso sempre em mente, que as partes são claras e diferentes, não é a mesma peça o tempo todo, é um tipo de música diferente. Mas a peça fica tão extrema e é tão exaustiva. É sobre isso que a peça é: situações extremas. Por exemplo, a velocidade. Tocam tão depressa. Não é possível escrever música mais rápida. E a certa altura, a música fica tão alta. Com 20 músicos não se pode escrever música mais alta, será talvez doloroso. Existe um limite para o volume. Mas, ao mesmo tempo, a música torna-se extremamente densa e lenta, e não tenho de continuar com estes extremos diferentes. Cheguei ao ponto em que Speicher terminou. Jamais escreveria outra vez uma peça como esta. Está concluída. Para mim, na composição é assim. Alguns compositores gostam de trabalhar na mesma ideia, continuar com o mesmo material. Pensei em terminar e seguir para outra coisa.

 

PR: Seguir para outra coisa noutra obra. Percebo. Já falaste um pouco sobre a estrutura da peça, sobre a micro-organização que se encontra de novo na concepção formal da obra. Julgo que é um grande desafio para um compositor escrever obras com este tipo de duração, especialmente com material reduzido. Como planeias ou como tentas antever a perspectiva do ouvinte? Organizas a música de uma forma em que a percepção é sempre movimentada e animada? Porque algo que me impressionou desde o início é que – com toda a complexidade, és um compositor complexo e gosto mesmo disso porque é sempre um desafio, –  mas, por outro lado, na tua música, raras vezes, ou nunca tive a sensação enquanto ouvinte de que me perdi. Dás o vocabulário, defines vocabulário que sou capaz de reconhecer, que está claramente definido e sou capaz, enquanto ouvinte, de seguir as variações, os desvios, o que está realmente a acontecer. É bastante impressionante na tua música. Quais são as tuas estratégias para atingir isso?

EP: Em primeiro lugar, obrigado, porque o que disseste sobre a minha música é exactamente o que quero com a minha música. É complexa, mas não complicada e estou interessado no ouvinte. O ouvinte é meu parceiro. A arte e a música são comunicação, quero partilhar alguma coisa. Encontro algo, quero mostrá-lo e partilhar o que faço com a música. É necessária uma clareza especial naquilo em que estou a trabalhar. As peças que faço começam frequentemente com situações muito simples, para ter a certeza: – olhem, estou a trabalhar com isto. Speicher, uma obra de 75 minutos, começa com o material mais simples que veio à minha cabeça: o Dó na corda solta nas violas. São as duas violas. Começam com estes dois sons. Mas podem tocar aqui, ponticello, em diferentes pontos da corda e depois podem mudar a afinação um bocadinho. E depois o violoncelo pode tocar o Dó e depois os violinos podem tocar o Dó. É possível construir imediatamente variações sobre tudo. É a estratégia, não sei. A ideia de variação é o mais importante para mim. Então, no material básico de que a música é feita pode haver variações, mas as variações também podem ser o primeiro minuto da peça, que posso começar de novo e fazer variações, ou posso pegar nos primeiros 15 minutos e escrever outra peça, como Speicher V é uma variação de Speicher I. A peça inteira é uma variação da peça inteira. Mas estas camadas diferentes de variações não são técnicas, não são estruturas, são algo que tem que ver com percepção. São acerca de serem claras, para que os ouvintes possam reconhecer as coisas a regressar. Quero partilhar e levar o meu ouvinte pela mão e conduzi-lo ou conduzi-la pela minha peça. Para isso preciso de clareza. Em primeiro lugar, é para mim próprio. Sou um absoluto amante de música. Amo expressar coisas com a música. Não preciso de explicações que venham de fora. A própria música tem de ser capaz de construir o processo.

 

PR: És compositor, mas também instrumentista. Lembro-me de, quando nos conhecemos, há muitos anos, estares a tocar piano e celesta, estavas sempre nalgum ensemble, e agora és realmente um bom maestro, dirigindo não só a tua música, mas também muita outra música, jovens compositores mas também outro repertório. Quão importante é a prática de tocar música para a composição?

EP: Foi sempre assim. Quando comecei a compor, talvez aos 11 anos eu já tocava piano e dei sempre concertos, fiz música de câmara, cantava em coros… Comecei a dirigir e a compor ao mesmo tempo. Foi sempre importante. Para mim foi sempre claro que queria ser músico também. Compor traz muita solidão. Está-se sempre sozinho. Há ensaios da nossa própria música o tempo todo. Não queria isso. Gosto mesmo de trabalhar noutras ideias que não as minhas e de estar com pessoas. O contacto com pessoas é tão importante. Nunca páro de aprender com os músicos, o contacto com eles é o mais importante. Quando estou a compor, imagino pessoas.

 

PR: Pensas em músicos específicos?

EP: Sim. Quando tenho uma encomenda de uma obra imagino sem dúvida a pessoa a tocar a peça. Algumas vezes imagino diferentes pessoas, mas imagino sempre pessoas a tocar a música. Significa que quando estou em casa a compor, não toco os instrumentos, mas estou no processo de… É algo que não está só no cérebro, é o corpo, o corpo das pessoas a fazerem coisas. Estou absolutamente consciente disso. É muito bom imaginar as pessoas a mexerem-se e a inventarem diferentes movimentos. Por exemplo, nesta peça há muitas notas na corda mais grave dos violinos, muito agudas, e imagino…Só o próprio gesto é tão intenso. Não é preciso ouvir nada, é só ver como os músicos estão a fazê-lo, com o vibrato e o violino começa a tremer. É óptimo. É uma expressão que vem do corpo e eu gosto disso. Por certo que não é só entre mim e o músico, é parte da comunicação. É muito importante a expressão da música. Podemos falar de estruturas, gosto de falar de estruturas, mas a música nunca é abstracta. A música tem que ver muito com a emoção e com a expressão, e a expressão tem que ver com o que os músicos estão a fazer.

 

PR: Com o lado físico, a actividade.

EP: Com a actividade. E por isso não há música sem expressão. De certeza que a expressividade da música não é sempre a expressão do que se pode explicar. Não se pode dizer: a minha peça expressa aquilo. O mesmo com a música de Bach, de Mozart e de Beethoven. Não se pode dizer que é sobre aquilo, mas de imediato se percebe a expressividade. É o mesmo para a minha música, apesar de a expressividade ser completamente diferente e o que a minha música expressa ser diferente. Mas não se pode explicar quais são as expressões. Isso é o mesmo.

 

PR: Voltando à estrutura de Speicher. Como é que, em poucas palavras, e sei o quão difícil é descrever por palavras a música, estávamos a falar disso, mas como caracteriza estas seis partes de Speicher?

EP: É muito difícil, porque cada peça contém muitas coisas diferentes, diferentes processos, é sobre abrir e fechar.

 

PR: Mas falando em termos gerais, o que é mais lento ou em termos de instrumentação. Se percorrer os andamentos, como é que se relacionam uns com os outros? Falaste um pouco disso antes.

EP: É muito difícil, porque é uma questão muito complexa. Em termos gerais, pode-se dizer que existem dois andamentos, duas peças, que não são em tutti, que são combinações de ensemble mais pequenas, são a II e a III. Na II há só instrumentos de madeira, com harpa, acordeão e piano, mas sem cordas e sem percussão. Na III, só flautas, cordas, percussão e harpa. Há dois andamentos que são lentos, o III e o VI. Há dois andamentos que são sempre rápidos, o II e o V. O V é o mais rápido, é uma espécie de momento de superação, quando a música se torna cada vez mais rápida. Os andamentos I e IV têm tempos diferentes e o IV é como um clímax, a peça a ficar cada vez mais rápida e a ir para o super-rápido número V. Começa com o tempo mais lento e termina com o tempo mais rápido de toda a peça. A peça I é também como um clímax, abre mas tem um epílogo mais lento, é construída… Não sei como dizer.

O mais importante na peça é a relação entre solos e tutti. Escrevi a peça para o Klangforum Wien, grandes amigos meus, tinha em mente todas estas pessoas maravilhosas e pensei em escrever solos para toda a gente. Há solos para todos os músicos na peça, alguns muito curtos, outros mais longos. Às vezes um solo é só um compasso ou uma semínima e alguns solos são muito expandidos. Claro que é uma estratégia onde pôr o solo e qual o solo. Às vezes, espero, ou mostro um pouco. O solo do saxofone, por exemplo, surge tarde e é um solo muito grande. Isso é muito importante. E onde há maior densidade ou pontos em que toda a gente está a tocar, momentos em que soa a mais estruturado, mais melódico ou menos melódico. E, muito importante, a concepção harmónica. Por vezes, muito da peça é estruturada por harmonias microtonais, um pouco complicado de explicar como funciona. Estou a trabalhar em algo que se pode chamar harmónico, uma nova forma de pensar acerca de acordes, diferente do normal. É tudo com microtons, degraus mais pequenos do que os meios-tons. Isto é por vezes muito difícil de tocar, mas chegámos aqui muito depressa. Os músicos habituam-se. Não é tocar bem ou mal, afinado ou desafinado, é uma nova concepção de que acordes podem ser consonantes ou dissonantes.

 

PR: Exactamente. É também uma concepção de cor, certo?

EP: Sim, é cor e consonância. Houve um período grande na música contemporânea em que a sensação de consonância e dissonância se perdeu um pouco.

 

PR: Completamente perdida.

EP: Acho que é muito interessante. Não significa que a afinação “normal” é consonante, talvez o normal seja o dissonante e o consonante está desafinado. Não interessa, tudo é possível, porque defini isso e jogo com isso. Mas não foi uma resposta sobre a estrutura geral da obra. Acho que foi suficiente para se ter uma ideia. A peça é tão longa. Há duas coisas muito básicas: tenho de trabalhar com contrastes e com diferentes velocidades, e manter as coisas frescas. Por vezes, há algo que não usei na obra, depois de uma hora há algo que não usei antes e preciso de uma estratégia para isso, para ter a certeza de que tenho sempre coisas que já se conhecem, que se reconhecem, e ter coisas novas.

 

PR: E agora vamos lá. Sim. Ainda tenho mais uma pergunta. É mais ou menos pessoal porque a minha sensação é de que a tua música… A tua ideia de melodia, vamos chamar-lhe assim, é bastante pessoal e invulgar. Estou curioso em saber. Tenho de suspeitar de que talvez tenha que ver com a forma como concebes estruturas melódicas. A pergunta é: quão importante é para ti a música não-europeia? Porque sinto que há algo relacionado na tua forma de ornamentação, nas pequenas inflexões das vozes que não encontramos na tradição da música da Europa Central, mas encontramos muito… noutros sítios. Há alguma influência importante?

EP: É extremamente importante. Sou completamente viciado em música não-europeia e há tanto para descobrir, absolutamente rico. Sou influenciado por música árabe, persa e turca, a música do Médio Oriente, quando falas de todas as ornamentações, inflexões e microtonalidade em coisas lineares. Algumas das coisas microtonais têm muito que ver com isso, mas não uso escalas árabes ou algo do género. Não li muito acerca desta música, não tenho teoria sobre música árabe, sou apenas um fã, gosto muito e tenho a minha abordagem pessoal enquanto fã. E outra música de que sou fã é a música coreana, que tem uma forma completamente diferente de trabalhar com a própria afinação. Na música coreana não há esta ideia: “um Mi é sempre um Mi e quando se regressa é um Mi outra vez…” Na música coreana têm de se tocados de uma forma diferente. ..Quando se regressa toca-se mais agudo ou mais grave, toca-se com um glissando ou um vibrato. Há muitas coisas com o vibrato na música coreana, o que é absolutamente maravilhoso. Sem dúvida que todas estas músicas não-europeias não têm polifonia. É essa a questão. A questão com a música ocidental, quando começaram com a escrita da música, na Idade Média, conseguiam fazer polifonia mas perderam material de ornamentação… Mas interesso-me por ambas. Venho de uma cultura de escrita, adoro escrever música, mas é interessante pensar que as coisas têm o mesmo tempo. É uma abordagem de quase improvisação aos tons, pegar neste material fazer diferentes coisas.

 

PR: Por favor não percam a oportunidade de conhecer a música fantástica de Enno Poppe, que vai dirigir o Remix Ensemble nesse concerto.

EP: É um grande prazer trabalhar com o Remix Ensemble, é um grande grupo. É uma grande honra para mim estar aqui enquanto compositor residente.

 

Entrevista realizada 17 de Janeiro de 2023